Sabedoria de Amsterdam

contos de viagem

Era possível sentir os neurônios esmigalhados pelo chão; as ruas exalavam piração e perda de consciência; todos os cheiros perceptíveis eram de fumaça de alucinógenos; bicicletas, carros, pessoas chapadas e trens vinham por todo lado, confundindo-se em seus caminhos e tornando difícil a existência naquele lugar. Isso era Amsterdam, uma cidade onde buscar algum sentido pra qualquer coisa seria perda de tempo. Péricles necessitou de algumas semanas depois para conseguir se readaptar à vida fora daquela loucura.

Amsterdam não é para qualquer um mesmo. É bem estranho que pessoas buscando atingir outros níveis de consciência e percepção estejam perambulando em quase harmonia com outras tão desejosas de consumir história e cultura europeia. E às vezes elas são a mesma pessoa.

Não demorou 10 minutos após sua chegada para que Péricles já estivesse de posse de um grama de Poeira Amnésica, um híbrido genético de cannabis sativa e indica que possuía uma cor verde neon na vitrine. E já mandou pra cuca! Que sensação deliciosa aquela: o cérebro se tornando pastoso já no segundo trago (o primeiro só tinha causado tossidas e lágrimas, pois não ele esperava aquela bomba de maconha indo de uma vez só pros seus pulmões); o ritmo e a articulação das palavras já suavizados; ao seu redor, nuvens espessas daquele cinza mágico fazendo espirais e ondas; e uma boa energia vibrando por todos os lados. O segundo trago o fez pensar como seria maravilhoso se aquela cena pudesse ser algo corriqueiro em todos os cantos do mundo:

Entrar no bar, escolher o seu fumo de um catálogo, sentar-se na mesa mais confortável disponível, estar com seus amigos ao redor e deixar o baseado rolar livremente, sem nenhuma preocupação com leis, moralidade ou parvoíce. A erva atingindo seu estatuto pleno de legalidade após brotar da semente e se desenvolver com o desejo de proporcionar ondas e mais ondas de bem-estar às pessoas. Era a vida correndo maravilhosa para todos.

O efeito foi poderoso e tornou o passeio por Amsterdam extremamente mais agradável. Alguns cartazes nas ruas diziam para evitar consumir cocaína de vendedores clandestinos, pois uns três estadunidenses haviam morrido fazia pouco por conta disso. Péricles encontrou um desses vendedores bem próximo de uma loja que ostentava um orgulhoso cogumelo sorridente luminoso em sua porta. Muitas boas drogas eram contempladas, mas cocaína, por algum motivo, não podia ser comercializada e levava as pessoas a comprarem no mercado informal. Não foi dessa vez que o pessoal do pó saiu do submundo.

Por sinal, após dar de cara com esse cogumelo simpático e de sorriso cativante, a ideia de uma viagem ainda mais intensa surgiu espontaneamente. Quando veio à Amsterdam, Péricles pensou em estar chapado o tempo todo. Mas era possível uma onda ainda mais extensa e intensa. Trufas e cogumelos mágicos comercializados por todo lado. Para tornar aquilo ainda mais especial, resolveu fazer do jeito certo de se consumir substâncias psicodélicas. Quase um ritual. Um dia inteiro reservado para ir onde a mente dele o levasse, deixando todos os seus canais perceptivos preparados e afoitos por aquela viagem.

Vondelpark: perto do centro da cidade, sem perder contato com a civilização, mas ao mesmo tempo um clima de isolamento perfeito; gramados extensos, fontes, patinhos e esquilos, arbustos altos e um idílico riozinho sinuosamente cortando o parque todo; e ainda contava com uns 3 amigos de longa data pra lhe fazer companhia e deixar rolar o que tivesse que acontecer.

A mente tem dessas coisas mesmo. Ficaram uns 20 minutos se perguntando se iria dar algum efeito, se tinham comprado algo estragado (o gosto era tão ruim que a hipótese era real), ou mesmo se seus corpos – veja só a arrogância – já tinham experimentado tantas drogas que o cogumelo não encontrava uma via sequer desobstruída. Mas então a frase foi “Fecha os olhos e vê a doideira que tá”.

Alguns deles fecharam, outros não. Fato é que a existência de dois mundos estava consolidada. O acesso a esse outro mundo poderia ser fechando os olhos ou por aquela árvore robusta atrás da gente, ou mesmo logo ali, do outro lado do rio. E os patos? Os patos faziam parte de qual mundo? Eles inflavam, o verde de suas penas emanava raios de brilho intenso, como se fossem explodir, e ao mesmo tempo diminuíam de tamanho, enquanto a grama ia no sentido oposto, aumentando. O rio do mundo (algum dos mundos) ganhava a textura de gelatina, ficando extremamente liso, e virava uma espécie de elipse. Elipse? Pode crer, o centro dele estava muito mais alto, enquanto as bordas ainda tocavam a margem no seu lugar normal, numa forma de fundo de jangada. Isso é uma elipse? O que é uma elipse? E ali onde o rio faz a curva, já tinham todas essas aves voando ao redor, num clima de pré-história/ilha perdida? Bonito mesmo é esse brilho que sai de todo mundo, destacando eles da cena. E que cena! O verde tá intenso e cintilante a ponto de não existir. Ou existir demais. Mas o outro mundo não era esse o tempo todo? Dois dos amigos dizem que dá pra ouvir as vibrações do outro mundo encostando o ouvido na árvore. Duvidoso. O mundo real já não existe mais, aquilo que era um lençol em cima do outro amigo virou um casulo. Não era um casulo antes, era? Antes… Antes do quê? Desde que se lembra, o rio estava liso na textura e nesse desenho meio cônico, as pessoas do outro lado do rio tinham essas formas arredondadas, sem contraste com o fundo. Ué, mas o rio tá com uma textura mais espessa agora, como um leite condensado saindo da lata. O verde já tá menos verde, as aves de olhos arredondados como de desenho animado já não estão mais lá. Ah sim, uma nuvem passa agora. E traz frio. Faz o pato ficar maior. Será que o pato foi desenhado à mão? Quem desenhou? E quando, porque a impressão é de que ele sempre existiu. E sempre existiu assim. “Não existe nenhuma felicidade maior do que essa”, disse um dos amigos. Pode crer, felicidade é isso. Admirar o rio, o pato, a curva com as aves em forma de desenho animado, as luvas de boxe se movendo nesse vermelho indefinível. Cara, que sensação boa! Ah não, lá vem outra nuvem pra diminuir o brilho de tudo. De onde vem as nuvens? O sol deu uma piscadela pra mim antes de ser escondido por elas. Mais patos vindo. Patos são lindos, com esse verde emanando raios brilhantes pra todos os lados. O jeito que eles inflam e diminuem é tão irreal. É como se eles não existissem. A natureza é sábia demais, fez tudo perfeito. Fez quando? E porque ela ainda manda nuvens pra tapar o sol? Porra, é isso! Deus fez isso tudo! Cara, Deus é o máximo! Dava pra imaginar ele desenhando à mão esses patos. Como que se dá esse efeito tão forte de brilho às penas dos patos? Patos são lindos e perfeitos demais. Felicidade é isso aqui. Não existe felicidade maior do que isso. O amigo tava certo.

Onde é que estão eles, por sinal? Um ainda tá no casulo. A outra tá ali abraçada com a árvore. Legal que o brilho dela se junta com o da árvore. A árvore sempre foi parte dela? Não lembro de ter visto minha amiga sem uma árvore. Como era tudo antes do parque? Parque, Vondelpark. Verdade, aquilo era um parque. Cadê o outro amigo? Hum, só seguir o rastro de pegadas douradas emanando essa luz efusiva pro céu. Ah, tava ali do lado deitado parecendo um boneco. Tá vivo, mas o corpo tá diminuindo e aumentando. Isso deve ser bom. “Como você tá?”, e ele responde “Acho que preciso duma ambulância”. O verde brilha menos, o formato cônico do rio murcha até ele ficar reto de novo, “Como assim ambulância?”

“É. Uma ambulância. Tá ruim. Vou pedir pra alguém chamar uma ambulância.” – o tom é quase neutro, com uma certa urgência de quem tá viajando (pirando, numa onda louca, essas coisas).

“Não dá pra chamar ninguém. As pessoas não nos ouvem. Vê? Tem esse invólucro invisível aqui que só deixa a gente falar entre si.”

“Ah, mas tá ruim. Vou quebrar o invólucro.” – não parece nada demais pela voz dele, que tá lenta e tranquila, mas quebrar o invólucro significa que algo é urgente de fato. Ou ele não estaria vendo o invólucro?

“Não vai fazer sentido. Ninguém vai te ouvir. Não faz sentido”

Num movimento rápido demais pro que estava acontecendo até agora, mas ainda num tom neutro e calmo, “Ei moça! Moça! Você poderia chamar uma ambulância?”

E tirando o fone de ouvido, numa atitude que ainda não demonstrava nenhum alarme, “Ambulância? Tá sentindo algo?”

“Sim. Nós tomamos cogumelo e a onda tá muito forte. Quero que acabe. Tá tudo derretendo, nada tem forma definida, tá forte demais.”

“Mas seu coração tá acelerado? Se sente mal de fato?”

“Não. Mas tá tudo derretendo. Sem definição. Um grande desenho animado bizarro.” – e até aqui nenhum dos dois tinha se movido um dedo ou demonstrado preocupação.

“Se é cogumelo, é só aproveitar. Embarque na onda, não tente lutar contra ela. Você tá passando por um pico, e já já isso vai passar. Que horas vocês tomaram?”

“Umas 14h.” – a amiga da árvore falou, a luz ainda em comunhão com a árvore.

“Então. São 15:30h agora. Antes das 17h vocês já estarão na parte mais tranquila da viagem.”

A amiga da ambulância, já com um traço mais agitado na voz, “Mas que dia é hoje? Onde eu tô?”

“27. Maio. Você tá em Amsterdam, no Vondelpark, viajando de cogumelo com seus amigos e daqui a menos de uma hora o pico da onda vai passar, daí tudo vai ser mais tranquilo.” – a moça parecia alguém bem experiente, e sua voz transmitia de fato experiência. Pessoas de Amsterdam, né.

Os amigos tentaram explicar para o da ambulância que a onda já estava para passar, e que tudo estava em suas cabeças apenas, sem nenhum sintoma orgânico. O que precisavam era embarcar na viagem e deixar rolar. Percebia-se que todos estavam também explicando para si mesmos, pois o conselho da moça tinha sido de uma sabedoria consoladora.

A Sábia colocou os fones de volta e o invólucro voltou a se fechar. A onda a partir dali tomou um contorno mais real, mas fechando os olhos ainda havia um outro mundo para passear nele. Péricles conseguiu também acesso a esse mundo, e pela próxima hora ficaram todos se divertindo por lá. Em silêncio, mas sem dormir.

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