O Eterno Retorno Escocês

contos de viagem
  • Se um demônio chega pra você, num dia ou numa noite qualquer, e diz que sua vida será eternamente uma repetição dos mesmos fatos, o que você faz?

     

  • Nietzsche essa parada né? Já ouvi falar. Aquela coisa do eterno retorno que, sendo a energia do mundo limitada, dentro de um tempo infinito, é fato que, de todas as combinações, a gente vai viver exatamente a mesma vida, não uma nem duas vezes, mas eternamente.

     

  • Você fala e parece simples, Robyn. Mas imagina que tormento ter que fazer as mesmas coisas do mesmo jeito pra sempre. É um demônio que traz a notícia. Bom não pode ser. Se você escolher uma mesa perto do banheiro, vai ter que lidar com o mau cheiro por infinitas vezes em infinitas vidas.

  • Opção tem. A questão é que não será você, e sim outra vida. Outra consciência sendo você, e não você mesmo. Ou algo assim. Parece que nem Nietzsche conseguiu entender muito bem o que disse, e achava isso aterrador.

  • Se ele tivesse entendido, com certeza não teria deixado o Wagner com a mulher maneira e gata. Aquele chato da porra. Perder a mulher repetidas vezes por toda a eternidade não é muito legal.

  • Você fala isso porque não pensa na Cosima. Ela era a própria definição da vontade de potência que Nietzsche falou, mas sem ser um merdinha apaixonado como ele foi. Imagina ter que passar infinitas vidas do lado daquele bigode ridículo. Sem falar que o cara dizia coisas que nem ele mesmo entendia. Esplendorosa, empoderada, dominava os ambientes e não se deixava ofuscar à sombra de um compositorzinho qualquer que a única coisa que fez foi revolucionar os cânones da música.

  • Te entendo. Mas e o Wagner? O antissemitismo dele irritava qualquer um.

  • Exceto a Cosima, aparentemente né? Os dois juntos dariam orgulho a qualquer Hitler do século XIX. Mas aí é que tá: se você vai eternamente voltar e fazer as mesmas coisas, pra que gastar tanto tempo odiando judeu?

  • Isso se existirem judeus eternamente.

  • É… – contemplam os copos e deixam uns segundos a mais correrem.

  • Mas e você? O que faria?

  • Com a Cosima?

  • Não. Com a história do demônio. Que que você responderia?

  • Não tem resposta. O demônio veio e te falou que é isso que vai acontecer. Um fato! Não tem pra onde correr e essa é a desoladora natureza do ser humano.

  • Ah vai. Nem é tão mau. Pelo menos existe uma vida eterna. Pensa bem: se isso que estamos fazendo agora se repetirá infinitas vezes, não significa que na verdade isso já aconteceu e não adianta a gente fazer nada pois o que está pra acontecer será exatamente igual ao já acontecido?

  • Verdade. Se Nietzsche tivesse vivido pra entender sobre Einstein e temporalidade, jamais ia propor uma baboseira dessas.

  • É…

  • Pois é…

  • Apesar que isso é só um exercício teórico. Ele até queria entrar pra universidade de física e ver se era possível estar certo na prática, mas ainda bem que não levou isso a sério. Imagina a decepção.

  • O que só demonstra o declínio mental em que ele se encontrava. Pensa que ruim ter que viver eternamente sendo os últimos dez anos da sua vida de maluquice e despeito por não conseguir roubar a mulher do amiguinho.

  • Grande Cosima. Devia ser uma baita mulher.

  • Ah essa era. Chata a obsessão pelos judeus.

  • Se as combinações são finitas e o tempo infinito, em alguma vida possível o Nietzsche conseguiu a Cosima né?

  • Ou EU consegui a Cosima!

  • Nuoohhh! Totalmente! Se bem que, se ela era antissemita, talvez fosse homofóbica. Uma burrice leva à outra.

  • Não em todas as vidas possíveis né. Em alguma dessas voltas do tempo, a Cosima há de ser minha! Sem homofobia, sem bigode nietzschniano. Só amor!

  • Falando em amor, e nossa vez no karaokê? Será que já passou?

  • Ah, sei lá bicho. Esse bar é bom, mas é uma noite só em Glasgow que você tem, e a gente já tá há tempo demais aqui.

  • Faz sentido. Não quero ficar eternamente aqui.

TU DU TISSS

  • Timing preciso do karaokê. Vambora?
  • Shotzinho de whisky no balcão só pra esquentar.

E sim, e estava frio. Saíram os dois pelas ruas de Glasgow, Escócia, pois era a última noite de Péricles ali, mesmo os nietzschnianos achando que não é bem assim.

Entraram numa rua qualquer. Deram de cara com a estátua do duque em cima do cavalo com um cone em sua cabeça. Robyn explicou que as autoridades locais já haviam desistido de tirar o cone, pois, no dia seguinte, ele sempre apareceria de novo. Passaram por ela e continuaram andando. Grande mulher aquela Robyn. Sabia muita coisa. Encantadora… Dá pra entender porque grandes homens da história da humanidade como Nietzsche e Wagner brigaram forte por conta de uma mulher.

  • Péricles, para de me olhar desse jeito, seu bêbado maluco! Vamo pirar!
  • Ah se você gostasse de homem, Robyn…

  • E como gosto. Só que hoje é dia de ficar louco.

  • Vamos por essa esquerda aqui. Tá com cara de ter bar.

  • Tem gente pelo menos… Pegamos uma Guiness naquela janelinha pra levar. Dá pra ficar muito do lado de fora hoje não.

Despejando a Guiness pra dentro, foram andando a esmo, e encontraram um som tocando, mas não tinha ninguém vendendo álcool. Pararam pra ouvir e acenderam um.

  • Falando sobre demônios e tempo infinito, tenho outra pergunta: se o próprio diabo, quando você chegasse no inferno, lhe dissesse que era obrigatório escolher uma droga para ser usada por toda a eternidade, sem nunca parar, qual você pegaria?
  • Isso não soa muito como o inferno. Mas beber é bom demais. Entendo que maconha é maravilhosa. Ainda assim, sendo pra sempre, fico com o álcool.

  • Sempre que pergunto isso as pessoas se dividem entre maconha e álcool. Mas, pô Péricles, ‘cê tá no inferno! Dá até pra ficar mal, sentir as dores da carne, o sofrimento é eterno e tal. Mas na questão de estar morto não dá pra piorar. Não precisa mais temer a morte, não tem mais que se controlar. Eu vou de LSD fácil. Imagina as psicodelias loucas que rolariam olhando as chamas do inferno serpenteando em seu brilho intenso.

  • Mas é uma só? Sério que no Poço de Satanás só vai ter uma droga pra escolher? Tem que rolar um mercado negro, um escambo, algo assim.

  • Disso eu não sei. Me chame de louca, mas, sendo só uma caloura ali nas Densas Trevas, eu acreditaria na palavra do diabo.

  • O fato é que é bem bom pensar no calor da Grande Fornalha nesse frio escocês maldito.

  • Ver a pontinha do cigarro queimando me conforta. As brasas adquirindo esse laranja luminoso dão uma sensação deliciosa. – os dois contemplam a ponta do baseado. – Mas vamos pro bar.

Talvez por convicção política, ou só porque a gravidade atuante em seus corpos ébrios já tendia pra esse lado, seguiram à esquerda. Dessa vez não tinham tanta esperança de encontrar um bar, porém vagar curtindo a chapação tava bom.

  • Eita, Péricles! Por essa a gente não esperava. E parece estar animado! É pra lá que vamos!
  • Enfim! Doido por um Buchanan´s pra dar uma esquentada.

Aquele grupo de senhoras falando alto no canto já era conhecido. Assim como aquele barbudo mal-encarado atrás do bar. Que, quando eles se aproximaram, perguntou se queriam outra rodada de shot de whisky. Estranho… Mais estranho ficou quando chamaram o nome deles no microfone. “Mrs. Robyn and Mr. Pericles singing Besame Mucho”. Que maravilha ser recebido com o microfone ao chegar num bar. Cantaram. Dançaram. Se abraçaram às senhoras que falavam alto. Se esgoelaram, como se fosse a última vez. Mas algo dizia a eles que não, que deveriam curtir aquele momento ao máximo não por ser a última noite em Glasgow, e sim porque essa é a maneira certa de fazer tudo.

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